Todo grande edifício precisa primeiro de um período de invisibilidade para durar. Qualquer obra grande precisa, primeiro, de um bom período de escavações e montagem de uma fundação invisível para poder existir. No mundo intelectual, isso não é diferente.
Quando falei sobre esse blog e sobre o vlog de mesmo nome do Youtube, alguns leitores ficaram animados e ansiosos para ver algum conteúdo sobre a tal "cultura" que tanto se fala no debate público. Para sua frustração, demorei para escrever essas primeiras linhas, por estar muito ocupado com questões fundamentais do meu cotidiano que, caso não estivessem resolvidas, rachariam a qualidade deste trabalho.
Aliviado o estresse de tantas expectativas, vamos ao que interessa. Quando ouvimos algum político ou ativista de qualquer sorte falando em cultura, normalmente algum tipo de arte é mencionado (teatro, literatura, música, etc). Quem tentar formar um conceito de cultura apenas pelo que ouve nas propagandas políticas vai acabar confundindo cultura e arte, como se fossem equivalentes.
Cultivar (cult+ivar) a terra é colocar algo vivo DENTRO dela para que germine. Dependendo do que foi colocado nessa terra, um pequeno caule de um certo formato vai aparecer e vai crescer até estar plenamente manifesto. Alguém pode até não conhecer as sementes mas é fácil reconhecer uma árvore quando ela já está dando seus frutos.
Depois de ver várias definições de cultura (cult+ura), o leitor atento perceberá que ela é uma MANIFESTAÇÃO de algo INTERIOR e INVISÍVEL no homem. Conhecimentos, crenças e valores de uma pessoa ou de um povo dificilmente poderiam ser vistos sem essa manifestação. E essa manifestação pode, sim, acontecer através da arte - mas não só da arte. O comportamento, as tradições e os debates (principalmente os assuntos de seu maior interesse) também são cultura, tão são manifestações de conhecimentos, crenças e valores que podem existir em algum povo independente do investimento público em arte.
Como nordestino, posso usar um exemplo que o leitor esteja familiarizado para ilustrar o que estou querendo dizer. É de conhecimento geral que o nordestino tem, em seu comportamento, um sotaque cantado que o diferencia dos brasileiros de demais regiões. Como zona amplamente semiárida e predominantemente rural, o Nordeste sempre foi um vale de sofrimento sem fim. Não estou falando da vida com as facilidades modernas mas principalmente dos tempos em que a humanidade ainda não tinha aprendido a manipular a eletricidade. Não tinha ventilador, ar condicionado, geladeira, nem rádio, TV ou computador.
Para aguentar o sofrimento, o nordestino apegou-se às trovas portuguesas para se divertir e a poesia era sua sombra e água fresca. Os pedregulhos quentes do campo eram contrastados com as flores de sua garganta, com as palavras rimadas e metrificadas das cantorias, que continuam sendo tradição em festas juninas pelo país inteiro. O nordestino consumia poesia para sobreviver. E a poesia ficou marcada em seu jeito de falar. O sotaque nordestino facilita a produção de poesias, como observou certa vez meu querido pai (encaixando algumas frases aleatórias, que ele ouviu de algum comerciante num passeio, em possíveis motes poéticos para me mostrar onde está a graça desse sotaque).
O sotaque nordestino, nesse caso, é uma manifestação de um constante sofrimento material sendo remediado por uma alegria imaterial. Esse sofrimento e essa alegria podem não ser percebidos - mas o sotaque é! O sotaque nordestino é uma manifestação clara de um cultivo emocional feito no subterrâneo dos corpos calejados dos sertanejos!!! Hoje até mesmo uma pessoa mimada pode ter o sotaque cantado do nordestino e acabar vivendo nessa terapia improvisada sem sofrer nenhum dia de sua vida como ele sofreu...
Da mesma maneira que é interessante conhecer certa cultura, também é interessante notar que existem traços iguais em culturas aparentemente diferentes. Algumas dessas experiências são comuns a toda humanidade. São essas experiências universais que recebem o nome de ALTA cultura nos debates. Entendeu? A alta cultura também sobrevive ao tempo e também recebe outros nomes do povão, como sabedoria milenar, escritura sagrada, etc, etc.
O que me interessa aqui, nesse blog, é tentar definir a cultura brasileira e tentar descobrir sua posição dentro das experiências universais que tenho consciência. Assim, é possível transpor a barreira da rotina e libertar a mim mesmo (e, talvez, aos leitores) de suas amarras culturais, permitindo que esse país consiga, de alguma maneira, deixar de ser cauda do mundo e passar a ser cabeça. Também é importante, nesse trabalho, não apenas mudar elementos culturais mas também descobrir onde temos uma cultura forte que pode nos dar o orgulho de ostentarmos uma boa identidade!!!
Nos falaremos mais em outras publicações. Foi um prazer te receber aqui!
Até a próxima!